A Arena Porto-alegrense e o Novo Modelo do Futebol Brasileiro

Por Mariana Aita Dadda (1) e Paulo Roberto Rodrigues Soares (2)

Publicado no Boletim Copa em Discussão nº 19.

A designação do Brasil como sede da Copa do Mundo da FIFA de 2014 desencadeou uma onda de modernização do nosso futebol. Ou pelo menos dos estádios de futebol das cidades-sede, que estão sendo equipa- das com novíssimas e modernas arenas esportivas e multiuso.

O movimento vai além dos estádios da Copa (nove públicos e três privados) e atinge outros clubes que estão aproveitando a conjuntura favorável para mo- dernizarem seus estádios construindo novas “arenas”. Este é o caso do América Futebol Clube (que recentemente reinaugurou o Estádio Indepen- dência, em Belo Horizonte), da Sociedade Esportiva Palmeiras (que está construindo a “Arena Palestra”) e do Grêmio Football Portoalegrense, que no final de 2012 inaugurou sua nova Arena. Como primeira experiência de um grande clube brasileiro na ocupação de um estádio “padrão FIFA”, consideramos que os primeiros passos e tropeços da relação do Grêmio com seu novo estádio merecem ser relatados e dis- cutidos.

Nossa hipótese é de que o modelo de estádio e de negócio futebolístico implantado pela Arena do Grêmio é o modelo hegemônico nos grandes centros do futebol mundial (as ligas “5 estrelas” da Europa (3)) e que por ocasião da realização da Copa do Mundo no Brasil este tende a disputar posição com o velho modelo do futebol brasileiro. Algumas questões referentes à Arena do Grêmio serão discutidas a seguir.

O novo modelo de futebol

O novo modelo de futebol, implantado nos principais países europeus desde a década de 1990, traz no seu escopo a transformação do esporte em um espetáculo rentável, comando por gestões profissionais em todas as suas etapas e estreitamente vinculado a estratégias de marketing, ancorado por grandes corporações mundiais que participam do negócio como parceiras e/ou patrocinadoras. Este novo modelo é auspiciado pelas mais poderosas entidades do futebol mundial: a Federação Internacional do Futebol Associado (FIFA) e a União das Associações de Futebol

Europeias (UEFA). Os centros periféricos do futebol tentam em maior ou menor grau imitar tal modelo, porém sem atingir a rentabilidade e a visibilidade que o futebol europeu alcança em nível mundial.

Mas a modernização se impõe aos quatro cantos do planeta. E a Copa do Mundo, que em suas últimas e próximas edições desempenha um papel de “colonizadora” ao se localizar em países “emergentes” da economia mundial (4), apresenta-se como uma “via junker” para a implantação de um novo modelo de futebol nos principais mercados mundiais.

O novo modelo depende da racionalidade dos atores globais no grande negócio do futebol e se caracteriza como uma nova fronteira de acumulação capitalista e urbana. Capitalista, pois grandes corporações priva- das incluem-se no negócio patrocinando ligas, adqui- rindo “naming rights” de estádios e ligas, comprando “passes” dos melhores jogadores, utilizando estes mesmos jogadores como “garotos-propaganda”. De acumulação urbana porque os estádios e arenas cada vez mais estão vinculados a negócios imobiliários, assim como os principais clubes de futebol do mundo se apresentam como atrativos turísticos e de city marketing (5).

No caso da Copa do Mundo, as obras de infraestrutura requeridas nas cidades-sede (o “legado”) abrem novos vetores de valorização urbana, bem como sua gestão atrela as administrações públicas aos ditames da cidade-mercadoria, ou cidade-empresa.

O modelo europeu de futebol é o dos estádios (arenas) modernos, patrocinados por grandes corpo- rações e financiado pela venda de direitos de transmissão por quantias fabulosas. É o modelo do torcedor vinculado ao clube. É um futebol caro, mas também um futebol espetáculo ao reunir uma constela- ção global de melhores jogadores do mundo (europeus, sul-americanos, africanos e, recentemente, asiáticos) os quais reúnem em si mesmos as funções de atleta, garoto-propaganda e ativo financeiro (ou commoditie), já que as negociações de contrato envolvem altíssimas quantias de dinheiro e uma rede de “investidores” globais.

Exemplificamos com os cinco maiores clubes europeus em termos de orçamento. Todos ultrapassam os 250 milhões de Euros. As maiores transações financeiras entre estes clubes (compra e venda de jogadores) também atingem números fabulosos, ultrapas- sando os 50 milhões de Euros (6).

“A mundialização deveu-se ainda ao crescimento do negócio europeu do futebol, favorecido em especial pela alta da renda publicitária. Oligopólios transnacionais pagam cada vez mais para aparecer em transmissões planetárias” (Torres Freire, 2010).

No novo modelo do futebol uma “rede” de interesses se entrelaça: empresários, consultores, managers profissionais, departamentos de marketing, incluindo também políticos nas estreitas relações entre futebol e poder.

No Brasil o novo modelo atingirá inicialmente as torcidas do Grêmio Porto-alegrense, do Palmeiras, além do Clube Atlético Paranaense e do Sport Club Internacional. Estes últimos cedendo seus estádios para a Copa do Mundo de 2014. São estes clubes, além do Corinthians Paulista, que experimentarão o novo modelo de gerenciamento do esporte: estádios modernos, necessidade da arena gerar receitas próprias, ingressos mais caros e um novo padrão de “torcida” no interior do estádio.

Resta saber se os clubes acompanharão o padrão de gestão personalista, caudilhesca muitas vezes, em favor de uma nova gestão “profissional”. E ainda, se os dirigentes máximos de federações estaduais e da própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) serão novos personagens ou os velhos “cartolas” de nosso futebol.

Resta saber se o modelo será rentável em um país com um modo próprio de viver o futebol, onde há um grande monopólio das transmissões de partidas e onde o poder aquisitivo da grande maioria dos torcedores não apresenta condições de arcar com os “custos” da modernização.

O Grêmio e os problemas da Arena

Apesar da novíssima Arena Porto-alegrense, inaugu- rada em 8 de dezembro de 2012, não ser o Estádio escolhido pela FIFA para sediar os jogos oficiais da Copa de 2014 em Porto Alegre, é ela que está ocupando os espaços na mídia gaúcha ultimamente. A proporção alcançada pelas discussões entre o Grêmio FootBall Porto-alegrense e a construtora da Arena, a empreiteira OAS, transcende as quatro linhas do campo e deixou o futebol praticamente em segundo plano.

Após a inauguração da Arena, a euforia dos gremistas com a nova casa foi dando lugar a diversos sentimentos negativos. Até a eterna rivalidade com o Sport Club Internacional, cujo estádio está em reformas para sediar os jogos do Mundial de Futebol, foi deixada um pouco de lado. Atualmente, a rivalidade é entre a torcida do Grêmio e a direção do clube que, quatro anos após a assinatura do contrato com a OAS, está pedindo sua revisão, motivada por uma sé- rie de situações adversas, tanto para o time, quanto para sua torcida. A lista de reclamações envolve tanto cláusulas contratuais milionárias entre o clube e a construtora, quanto situações corriqueiras enfrenta- das pela torcida em dias de jogos.

Não podemos desconsiderar o fato de que o novo causa estranhamentos e dificuldades de adaptação. A implantação da Arena, substituindo o antigo estádio Olímpico, inaugurado em 1954, obviamente gerou impactos tanto no cotidiano dos frequentadores dos jogos (disciplina na hora de torcer, não fumar, não beber, não tirar a camiseta, não torcer em pé), quanto nos entornos do Olímpico e da Arena. Mas os problemas ultrapassam (e muito) os esperados em uma mudança radical.

O principal problema é financeiro. A renda do clube provém do seu quadro social e dos direitos de trans- missão vendidos para as redes de televisão. Para a- comodar os sócios que migraram do Olímpico para a Arena, a OAS “cedeu” o anel superior do Estádio por R$ 23 milhões/ano. Para cobrir este valor as men- salidades dos cerca de 25 mil associados foram re- ajustadas, projetando uma arrecadação anual de R$ 55 milhões/ano. Nem todos os sócios aceitaram mi- grar para o anel superior, ocupando também para as “Cadeiras Gold” e “Cadeiras Gramado”, o que gerou um adicional de R$ 18 milhões de reais/ano no mon- tante que o clube paga à OAS. Assim, o Grêmio precisa pagar anualmente a OAS, o equivalente a R$ 41 milhões. Para manter a folha de pagamento em dia, o clube já chegou a dever R$ 6,8 milhões de reais à construtora.

A situação tornou-se insustentável e uma revisão do contrato, para que o mesmo não fosse tão oneroso ao Grêmio, foi solicitada pela sua direção. A entrega definitiva do Estádio Olímpico para a OAS (processo chamado de “entrega das chaves”), prevista para 31 de março deste ano, ainda não se realizou. A primeira reunião entre as direções de Grêmio e OAS não gerou nenhuma modificação contratual. Mas este es- tá longe de ser o único problema do Grêmio. O des- contentamento da torcida abrange vários aspectos: acessibilidade ao novo estádio, segurança no entorno do mesmo, elevação das mensalidades, aumento no preço dos ingressos e dificuldade na aquisição dos mesmos nas bilheterias.

A Arena e o cotidiano dos bairros do entorno

Os bairros próximos à Arena–Humaitá e Vila Farrapos  situam-se na periferia de Porto Alegre. São bairros carentes de infraestrutura para receber tamanho impacto. Tanto os antigos moradores, quanto os novos frequentadores sentem a transferência da casa do Grêmio. E não apenas isto. Além da implantação do novo estádio, a OAS está construindo no local um complexo residencial e comercial com shopping center e centro de eventos (o “bairro” Liberdade).

Interferências no cotidiano dos bairros, presença de centenas de trabalhadores, vai-e-vem de máquinas são frequentes. Os moradores dividem-se entre os contrários à nova situação e aqueles que aproveitam a presença da Arena para novos negócios (venda de bebidas e lanches, estacionamentos informais). Em conversas com torcedores e moradores observamos uma série de reclamações de ambos os lados. Os moradores reclamam da perturbação de seu silêncio e tranquilidade em dias de jogos. Os torcedores pa- decem com as dificuldades de acesso e a (suposta) insegurança do entorno do estádio.

De volta à Arena

Outras situações que poderiam ter sido evitadas acompanharam a mudança de estádio: problemas com bilheterias, quedas de energia elétrica, gramado inacabado, orientadores mal preparados e quebra de parte da estrutura da arquibancada provocando um acidente que feriu cerca de vinte torcedores e interdi- tou parte do estádio.

O clube e a administradora vem empreendendo es- forços para minimizar os problemas. Nos últimos jo- gos houve aumento das linhas de ônibus que levam à Arena, o serviço de trem metropolitano (a estação mais próxima situa-se a 1,5 km do estádio) está funcionando até mais tarde em dias de partidas noturnas, novos guichês para compra de ingressos foram instalados e os instrutores (guias) para a localização da torcida no estádio estão melhor preparados.

Essas melhorias só vieram após três meses e muitas reclamações por parte de sócios e torcedores, além de críticas nos meios de comunicação. São problemas que devem ser resolvidos sob pena de que todo o novo modelo de estádio, de espetáculo e de negócio do futebol seja questionado. Restam diversas e im- portantes pendências como a adequação do estádio às normas urbanísticas da Prefeitura de Porto Alegre e a liberação de seu Alvará definitivo. Também são aguardadas obras de infraestrutura no entorno (pavimentação e iluminação) diminuindo a precarie- dade de circulação à noite.

As obras do Centro de Treinamento e sede administrativa do clube no novo estádio também não foram concluídas, mantendo o Grêmio dependente do Estádio Olímpico. Todas estas providencias que já deviam ter sido tomadas são fruto de atitudes precipitadas, onde fatores políticos internos do Clube falaram mais alto que o bom senso. A opção do clube de abrir mão de sua autonomia patrimonial e administrativa à cur- to prazo indiretamente afetou sua relação com sócios e torcedores, que se mostram desgostosos com as mudanças ocorridas até aqui.

Obviamente ninguém deixará de ser gremista por esses motivos. As promessas de “nunca entrar na Arena” que alguns torcedores fazem, provavelmente serão esquecidas. Mas espera-se que o tempo permita que o Grêmio aprenda a conviver com o novo modelo e que os problemas detectados sirvam de exemplo para outros clubes brasileiros nestes tempos de modernização do futebol.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora no Pro- jeto Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo/2014 e Olimpíadas/2016, do Observatório das Metrópoles.
2 Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre e Coordenador local do Projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016”.
3 Ligas da Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França.
4 Países-sede: África do Sul (2010), Brasil (2014), Rússia (2018) e Qatar (2022).
5 Nos últimos anos estádios e sedes dos clubes, com seus museus e lojas de material esportivo, estão incluídas nos roteiros turísticos das cidades européias. 

6 Os maiores orçamentos entre os clubes europeus: Real Madrid (479 milhões de Euros), F. C. Barcelona (450 milhões de Euros), Man- chester United (367 milhões de Euros), Bayern Munich (321 mlhões de Euros) e Arsenal (251 milhões de Euros). Fonte: Football Money League 2012.

Referências:
Deloitte Football Money League 2012. Disponível em .
Torres Freire, V. A economia do futebol chato. Folha de São Paulo, 20 de junho de 2010.